segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A despedida

É chegada a hora.
Essas últimas dedicatórias não cabem em nenhuma página de livro.
Será veementemente difícil olhar e sentir as tantas obras literárias ou não, e não poder presenteá-lo. Ficará em minha memória, uma ação não concretizada de você as lendo, as vendo, as ouvindo e sobretudo, sentindo, com a sensibilidade única, que lhe é peculiar, que nasceu e continua a crescer num filho caçula de uma mãe rígida e zelosa.
Felizmente, a minha ausência nesse aspecto não acarretará em um dano tão grande na sua rica construção cultural, creio que mais perderei eu, pelo seu entusiasmo, a sua alegria em descobrir, opinar, escrever e abarcar o que essas poucas migalhas de cultura erguem em seu ser. Perderei eu, em não vê-lo cada vez mais transformado, mais translúcido, mais forte, mais orgulhoso, mais feliz.
Será muito difícil me desvencilhar do vício que se tornou o "presentear" você. O vício que se tornou enxergar você em tudo que soa culto, belo, rico, ímpar. Será um duro exercício, que nem a magnífica Matemática poderá me ajudar a resolver. Só a mim, e diante de todas as possibilidades da re-criação de mim mesma, cabe essa árdua e dolorosa tarefa. Que Deus me ajude! E a você, que continue abençoando sempre, sempre, sempre, sempre...

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Os Três Mal-Amados
João Cabral de Melo Neto


O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa, as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.

 

segunda-feira, 22 de agosto de 2011



As Palavras
Composição: Sereia de Água Doce (Vanessa da Mata)

As palavras saem quase sem querer,
Rezam por nós dois.
Tome conta do que vai dizer.
Elas estão dentro dos meus olhos
Da minha boca, dos meus ombros
Se quiser ouvir
É fácil perceber.


Não me acerte
Não me cerque
Me dê absolvição
Faça luz onde há involução
Escolha os versos para ser meu bem e não ser meu mal
Reabilite o meu coração.


Tentei
Rasguei sua alma e pus no fogo
Não assoprei
Não relutei
Os buracos que eu cavei
Não quis rever
Mas o amargo delas resvalou em mim
Não me deu direito de viver em paz
Estou aqui para te pedir perdão.


Não me acerte
Não me cerque
Me dê absolvição
Faça luz onde há involução.
Escolha os versos para ser meu bem e não ser meu mal
Reabilite o meu coração.


As palavras fogem
Se você deixar
O impacto é grande demais
Cidades inteiras nascem a partir daí.
Violentam, enlouquecem ou me fazem dormir
Adoecem, curam ou me dão limites
Vá com carinho no que vai dizer.


Não me acerte
Não me cerque
Me dê absolvição.
Faça luz onde há involução
Escolha os versos para ser meu bem e não ser meu mal
Reabilite o meu coração.